segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Crise instaurada: considerações sobre o Salão de Arte de Mato Grosso do Sul 2014

 Lula Ricardi, sem título, papel fotográfico, madeira, carimbo, tinta carimbo, 60 x 60 cm, 2014


Os salões de arte assim como as bienais correspondem a um formato de exposição cuja complexidade se manifesta a partir da escolha dos artistas e/ou das obras selecionadas que são definidas por uma comissão curatorial ou através do conceito/tema adotado pela curadoria - no caso das bienais.
São eventos que buscam oferecer um panorama atualizado da produção artística em circulação - nacional e internacional - reunindo nomes consagrados e outros em ascensão no sistema da arte, promovendo um repertório de propostas e direções para a discussão das questões artísticas em evidência.
Entretanto, esses formatos de exposição vêm sendo criticados e seus sentidos questionados por agentes das mais diversas áreas do campo artístico. O fato é que são eventos que induzem a formulação de opiniões sobre suas propostas, comportando-se como termômetros de interesses, emoções e insatisfações.
Pensando no título da 31ª edição da Bienal de São Paulo[i] - “Como (falar sobre) coisas que não existem” - é pertinente entender que a arte proposta em eventos dessa natureza nem sempre é a arte que o público deseja encontrar. Criam-se expectativas que muitas vezes não são correspondidas em função do perfil dos artistas selecionados e das obras apresentadas. Então, em torno dessa complexidade, como entender ou falar sobre arte no/do momento atual?
No caso dos Salões de Arte, também são poucos os que ainda conseguem manter sua representatividade no panorama da arte no país, funcionando como mecanismo de reflexão sobre o papel e os percursos da arte na atualidade e, sobretudo, como vitrine para artistas em busca de sustentação de suas carreiras e divulgação de seus trabalhos.
Desde que foi retomada a realização do Salão de Arte de MS, em 2009, a expectativa era que esse pudesse ser um dos eventos mais importantes para as artes visuais no Estado, contudo, o que vi, desde então, com raras exceções, foi um projeto pretensioso que pouco contribuiu para a educação do público e para o campo artístico local. E não foi diferente na edição deste ano[ii], em cartaz no Museu de Arte Contemporânea de MS (MARCO). Após visitar a mostra, saí com a sensação de não ter visto nada inovador, nada surpreendente e quase nada que tivesse valido à pena ter me deslocado até o museu.
E tenho que discordar do que afirma a comissão de seleção e premiação do Salão: “as propostas apresentadas para a seleção expressam o fruto de longas pesquisas, revelando ao final, trabalhos coesos, de qualidade [...]”[iii]. Não! O que vi foi uma mostra equivocada e sem nenhuma relevância expressiva, com muitos trabalhos que pouco ou nada revelam sobre pesquisa, coesão e qualidade. Situação essa que acaba contribuindo para o questionamento da função e permanência desse tipo de proposta como referência/influência para o fomento da produção local e como meio de propor discussões e avanços para o entendimento das linguagens artísticas.
Entretanto, dos vinte artistas selecionados destaco Maiana Nussbacher e Lula Ricardi, ambos de São Paulo, cujas obras estão num nível de elaboração muito superior ao do restante apresentado na exposição, merecendo, assim, as premiações recebidas e devida incorporação ao acervo do MARCO.
A pintura de Maiana Nussbacher tem caráter psicodélico e efeito impactante. Opera com interessante repetição geométrica e cores vibrantes que são tratadas com precisão pictórica, numa minuciosa combinação entre tons e formas que se encaixam como num quebra-cabeça. Mesmo não proporcionando muitos argumentos para o debate sobre questões da pintura, é a melhor obra nessa linguagem na exposição.
Nos trabalhos de Lula Ricardi o rigor e a precisão na execução contribuem para que a leitura da ideia/conceito possa ser facilmente conduzida e identificada pelo espectador, num jogo entre imagem/palavra/objeto que articula os sentidos das obras.
Em uma das obras o mapa do Brasil está definido na sobreposição de números carimbados e com a palavra “escritura” repetida em diversas posições. Ao fixar alguns cabos de carimbos no suporte sugere que o país se comporta, em alguns aspectos, como um ultrapassado mecanismo burocrático. Uma relação interessante para pensarmos, nesse sentido, o formato das bienais e dos salões de arte: seriam também artefatos em obsolescência?
As exposições em formato de bienal ou salão de arte são sempre polêmicas e apresentam pontos altos e baixos. São eventos abertos que permitem reflexão, questionamento e diálogo. Para o público o desafio é ter interesse em buscar o melhor que as exposições oferecem e descobrir novas possibilidades de se relacionar com as obras, tentando detectar, onde é possível, o conhecimento nelas contido.
Assim, espero que em edições futuras o Salão de Artes de MS possa cumprir seu papel educativo e impulsionar o setor artístico local, apresentando propostas inovadoras e significativas em consonância com a produção dos importantes circuitos de arte no país.
E, discordando novamente do argumento da Comissão de seleção, este até poderia ser “um dos importantes salões de arte do Brasil”, desde que algumas medidas importantes tivessem sido adotadas para, de fato, torná-lo eficiente.
Críticas e contribuições são/serão necessárias para produzir efeitos positivos e ajudar no processo de amadurecimento desse projeto. Nesse sentido, considero como importante para o Salão: 1) Ter na comissão de seleção e premiação profissionais que tenham conhecimento das questões apontadas na produção artística em evidência no país; 2) Ampliar o valor da premiação para atrair um número maior de artistas com a possibilidade de melhoria da qualidade das obras inscritas/selecionadas; 3) Pensar um plano de divulgação nacional capaz de dar maior visibilidade ao evento.
Soluções simples que farão grande diferença, pois, da forma como esse salão se apresenta, infelizmente está muito aquém do que poderia contribuir e significar na nossa realidade artística. A crise está instaurada.

Rafael Maldonado[iv]
Novembro/2014

Notas
[i] 31ª edição da Bienal de São Paulo, de 06 de setembro a 07 de dezembro de 2014.
[ii] Salão de Arte de MS, de 5 de novembro de 2014 a 20 de fevereiro de 2015.
[iii] Retirado do texto elaborado pela Comissão de seleção e premiação do Salão de Arte de MS, edição 2014 - Douglas Raldi Herrera, Jonas Eduardo Marins de Santana, Zilá Soares -, publicado no catálogo da exposição.
[iv] Atua como Curador e é professor nos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Drama e densidade em Vânia Pereira



Vânia Pereira, um dos nomes significativos da produção artística sul-mato-grossense, produziu um vasto trabalho usando linguagens diversas que determinaram a versatilidade da artista em suas percepções sobre a paisagem, memória e as relações humanas.

Vânia encontrou sua grande expressão no desenvolvimento da gravura em metal, explorando com propriedade a técnica da ponta-seca (processo de gravação da imagem na matriz de metal por incisão direta usando um instrumento com ponta de aço), o que fez da artista referência da linguagem no pioneirismo do uso dessa arte no Estado.

Considerada grande mestra da arte de gravar, desenvolveu também trabalhos em pintura e desenho. A obra de Vânia tem muita dramaticidade e as imagens são geralmente densas, escuras e cada traço negro ou cada pincelada de cor traduz o envolvimento emocional da artista na busca do aperfeiçoamento formal de suas investigações. 

Com boa parte da produção de Vânia Pereira pertencente ao acervo do Museu de Arte Contemporânea de MS (MARCO) é possível estabelecer recortes que enfatizam os vários aspectos de seu trabalho, oferecendo ao público a chance de revisitar a obra consistente dessa artista que contribuiu com personalidade na constituição da história da arte local. 

                                                                   
                                                                    Rafael Maldonado
Julho 2014

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Exposição Mais para o centro, curadoria de Rafael Maldonado, apresentada no Museu de Arte Contemporânea de MS, de 10 de junho a 03 de agosto de 2014

obra de Humberto Espíndola


Mais para o centro


O conjunto de obras artísticas que compõe uma coleção ou acervo possibilita à ação curatorial maneiras diversas de se articular o conhecimento e interpretação estética que determinamos à arte. Efetuar novas avaliações para as obras, reorganizando-as interessadamente a partir de critérios de seleção, é exercício de conexão, experimentação e especulação que permite o reposicionamento da condição narrativa que elas assumem a priori.

Mais para o centro, título dessa exposição, propõe apresentar alguns dos artistas que estão ou já produziram nos Estados do Centro-Oeste brasileiro, sem a pretensão de se querer representar uma visualidade característica que defina a região, visto que, apesar da proximidade geográfica, cada lugar possui e produz elementos de cultura bem peculiares.

Assuntos e interesses diversos são adotados na construção de discursos particulares que se apropriam da condição humana para o estabelecimento das complexas relações culturais. Tempo, memória, poder, lugar são alguns dos elementos articuladores das práticas artísticas aqui reunidas e revelam o amplo campo expressivo dos artistas que trabalham em locais ainda não plenamente inseridos no roteiro e no sistema de arte no país.

O propósito de ações dessa natureza não traduz o sentimento de menos-valia ou pretende reafirmar a condição de isolamento. O que se quer evidenciar é a necessidade de reposicionamento da cartografia cultural brasileira, deslocando a atenção de instituições que determinam as regras das políticas culturais, oficiais ou não, em direções periféricas, e, nesse sentido, desviando mais recursos e interesse para a produção artística do centro do país.

Essa mostra confirma a diversidade da arte brasileira. Não configura a visualidade singular do Centro-Oeste, mas traduz a identidade plural de artistas que produzem reflexões e questionamentos em consonância com o que se vê frequentemente explorado nos circuitos hegemônicos.

No centro do país encontramos obras significativas produzidas por Ana Ruas, Beto Lima, Camila Soato, Carlos Nunes, Dalton Oliveira de Paula, Divino Sobral, Edson Castro, Evandro Prado, Genésio Fernandes, Gervane de Paula, Helder Rocha, Jorapimo, Humberto Espíndola, Lú Sant’Anna, Marcelo Solá, Mercedes Barros, Ovini Rosmarinus, Priscilla Paula Pessoa, Paulo Rigotti, Vânia Pereira, Virgílio Neto, Zilá Soares, entre tantos outros.

Os trabalhos selecionados integram o acervo do Museu de Arte Contemporânea de MS (MARCO) e coleções particulares de Campo Grande, correspondendo à proposta conceitual que evidencia a autonomia das investigações estéticas dos artistas aqui reunidos, sem que se precise categorizá-los pela realidade ou geografia cultural que os envolvem.

Rafael Maldonado*
Curadoria, maio de 2014


*professor no curso Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), atua como curador independente.