Ao visitar a exposição
Dialetos, As cores do Lugar e Gravuras (acervo do MARCO), somos introduzidos em
um mundo de linguagens diversas. Um mundo que nos proporciona a oportunidade de
refletir sobre muitas coisas, além de nos submeter a sentimentos diversos.
Aos olhos desacostumados de
um contato maior com as produções contemporâneas da nossa região, é preciso
lembrar que o artista traz consigo um repertório pessoal de vivências e
experiências que são traduzidas em suas produções numa linguagem iconográfica
repleta de simbologias e em algumas obras, a linguagem propriamente escrita.
Considero a imagem escrita
um recurso que complementa algumas obras no esforço de explicar a mesma. Porém,
ela não deixa outra alternativa ao observador, a não ser exatamente aquela
ideia ou mensagem que o artista pretendeu
transmitir. Esse fator limita um pouco o observador e não permite a ele fazer
outras leituras. Cada observador ao se colocar em frente à obra se permite
“viajar” em uma interpretação completamente particular e subjetiva, e sua
percepção da obra vai ganhando uma infinidade de significações.
A exposição Dialetos nos
proporciona essa “viagem”. Mas isso é possível somente com um olhar atento, reflexivo,
que nos permita, através do contato visual e sensorial, diversas leituras. A
exposição em questão, apresenta manifestações artísticas de vários artistas de
uma mesma região do Brasil: Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul e de
Brasília, no Distrito Federal. Em minha visão são estados pouco representativos
no campo das artes no contexto nacional, mas que aos poucos começa a se levantar
e a se mostrar como arte potencial para produções mais ousadas em um futuro
próximo.
Algumas obras me chamaram a
atenção, nem tanto pela beleza estética, que também é elemento importante na
constituição de uma obra, mas pelos elementos simbólicos contidos nelas. Duas
séries em particular me atraíram o olhar por mais tempo e me permitiram
observações e reflexões mais aprofundadas. Trata-se da série Memórias, da
artista Adelaide Fontoura, de Goiás, e da série Ikon, de Priscilla Pessoa, de
Mato Grosso do Sul.
Ambas são obras
cuidadosamente elaboradas, embora pertençam a linguagens diferentes e que
tratam de temas intrinsicamente perturbadores para a maioria. A série Memórias
utiliza-se do recurso da fotografia em preto e branco, coberta por um tecido de
renda finamente bem trabalhado, que está sobrecoberto por uma camada de
parafina, transmitindo uma atmosfera etérea num primeiro olhar. Nos pegamos
observando as grandes fotografias lado a lado, na tentativa de decifrar nos
rostos de cada indivíduo ali retratado traços que pudessem definir melhor suas
identidades.
Mas ficamos apenas no campo da imaginação, no flerte que muda os
ângulos, na tentativa de identificar melhor os elementos da obra, ou melhor,
das obras. Interessante que uma delas, assim como a Monalisa de Leonardo Da
Vinci, há a imagem de uma mulher vestida de noiva, que nos acompanha com o
olhar onde quer que nos coloquemos. A série Memórias nos remete ao passado, às
nossas raízes, a um tempo em que as mulheres eram subjulgadas e submissas e os
homens tinham papéis bem definidos no meio social.
Ao olhar a série somos
reportados a um passado não muito distante, talvez ao tempo de nossos avós, que
espalhavam retratos de seus pais e avós em porta retratos pendurados nas
paredes ou sobre aparadores de madeira bem torneados. As posturas e as vestes
bem cuidadas, os corpos escondidos sob as roupas bem comportadas da época, os
cabelos bem arrumados e as poses contidas nas fotografias antigas, reforçam
essa atmosfera sóbrea dos tempos de nossos antepassados.
Porém, os olhares e os
rostos escondidos sob a fina camada esbranquiçada da parafina, reforçada pela
renda, nos revelam questões que vão muito além. Provavelmente a artista quis
representar ali o falso moralismo de uma sociedade que vivia e sobrevivia da
imagem, das aparências, do nome, da posição social. Não muito diferente dos
dias atuais, mas muito mais camuflada e rígida. Uma imagem de resignação, de
solidez e de moralidade, que censura os instintos dando lugar a uma imagem
construída e distorcida do real.
A segunda série a ser
analisada, Ikons, nos transporta a um mundo proibido. Ela é composta de três
telas cuidadosamente pintadas e em cada uma apresenta temas que estão ligados
às fantasias mais íntimas do ser humano. Questões que há poucas décadas não
eram sequer pensadas, embora sempre estivesse em nosso subconsciente, emergem
nas telas que retratam estas questões com muita força e coragem. Quebram-se
tabus e nos permitem discussões a cerca da natureza humana e suas perversões.
Fetiches sob identidades escondidas na tela Grupo dos quatro, evidenciam
olhares fortes que se desviam do olhar do observador. As cores utilizadas nas telas são vivas e vibrantes e sugerem que são temas que não podem mais ficar sob o pano sujo da censura e do tabu sociais. A hipocrisia e a sujeira social veda os olhos diante de grupos que se diferem pelas suas opçõs sexuais e seu estilo de vida, mas não vedam os olhos para a violência e a corrupção. Onde há imoralidade neste contexto? Ser diferente, ter fantasias e realizá-las no âmbito da intimidade não está mais restrito, mas ocupa seu lugar no mundo das artes.
A série Ikons contrasta com a série Memórias, não somente no uso dos materiais e na forma de expressão, tampouco no conteúdo subjetivo que cada uma apresenta. Mas ao mesmo tempo que falam línguas diferentes, dialetos singulares, se complementam quando uma pretende esconder, disfarçar e calar uma realidade, enquanto a outra pretende escancarar ralidades que a maioria não quer ver.
Ao voltar ao mundo real após
“viajar” no interior das obras analisadas, voltamos com um outro olhar. Nossa
mente e nossos sentimentos despertados no momento da observação, remodela nossa
“lente” observadora e nos permite fazer leituras diversas e conhecer um pouco
do artista naquela tela ali exposta. É como se a tela nos chamasse para uma
breve visita a um pqueno recorte da personalidade do artista, que busca
intensionalmente dizer sempre algo sobre ele mesmo ou sobre o meio no qual ele
está inserido.
Juliana Moreno
Cavalheiro é acadêmica do curso de Artes Visuais da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul. O texto foi produzido como trabalho da disciplina Fundamentos
da Linguagem Visual, ministrada pelo professor Rafael Maldonado.