segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Texto de Juliana Moreno Cavalheiro sobre a exposição “Dialetos”, curadoria de Paulo Henrique Silva, apresentada no Museu de Arte Contemporânea de MS, de março a maio de 2012

Tarefa prazerosa contemplar e “saborear” obras de arte. Contudo, fazer um relato escrito sobre elas, é uma tarefa complexa e requer sensibilidade para perceber as sutilezas, um olhar “sem ciscos”, como costuma dizer um certo professor, e uma postura totalmente desarmada de (pré) conceitos.

Ao visitar a exposição Dialetos, As cores do Lugar e Gravuras (acervo do MARCO), somos introduzidos em um mundo de linguagens diversas. Um mundo que nos proporciona a oportunidade de refletir sobre muitas coisas, além de nos submeter a sentimentos diversos.   
Aos olhos desacostumados de um contato maior com as produções contemporâneas da nossa região, é preciso lembrar que o artista traz consigo um repertório pessoal de vivências e experiências que são traduzidas em suas produções numa linguagem iconográfica repleta de simbologias e em algumas obras, a linguagem propriamente escrita.
Considero a imagem escrita um recurso que complementa algumas obras no esforço de explicar a mesma. Porém, ela não deixa outra alternativa ao observador, a não ser exatamente aquela ideia ou mensagem que o artista  pretendeu transmitir. Esse fator limita um pouco o observador e não permite a ele fazer outras leituras. Cada observador ao se colocar em frente à obra se permite “viajar” em uma interpretação completamente particular e subjetiva, e sua percepção da obra vai ganhando uma infinidade de significações.

A exposição Dialetos nos proporciona essa “viagem”. Mas isso é possível somente com um olhar atento, reflexivo, que nos permita, através do contato visual e sensorial, diversas leituras. A exposição em questão, apresenta manifestações artísticas de vários artistas de uma mesma região do Brasil: Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul e de Brasília, no Distrito Federal. Em minha visão são estados pouco representativos no campo das artes no contexto nacional, mas que aos poucos começa a se levantar e a se mostrar como arte potencial para produções mais ousadas em um futuro próximo.
Algumas obras me chamaram a atenção, nem tanto pela beleza estética, que também é elemento importante na constituição de uma obra, mas pelos elementos simbólicos contidos nelas. Duas séries em particular me atraíram o olhar por mais tempo e me permitiram observações e reflexões mais aprofundadas. Trata-se da série Memórias, da artista Adelaide Fontoura, de Goiás, e da série Ikon, de Priscilla Pessoa, de Mato Grosso do Sul.
Ambas são obras cuidadosamente elaboradas, embora pertençam a linguagens diferentes e que tratam de temas intrinsicamente perturbadores para a maioria. A série Memórias utiliza-se do recurso da fotografia em preto e branco, coberta por um tecido de renda finamente bem trabalhado, que está sobrecoberto por uma camada de parafina, transmitindo uma atmosfera etérea num primeiro olhar. Nos pegamos observando as grandes fotografias lado a lado, na tentativa de decifrar nos rostos de cada indivíduo ali retratado traços que pudessem definir melhor suas identidades.
Mas ficamos apenas no campo da imaginação, no flerte que muda os ângulos, na tentativa de identificar melhor os elementos da obra, ou melhor, das obras. Interessante que uma delas, assim como a Monalisa de Leonardo Da Vinci, há a imagem de uma mulher vestida de noiva, que nos acompanha com o olhar onde quer que nos coloquemos. A série Memórias nos remete ao passado, às nossas raízes, a um tempo em que as mulheres eram subjulgadas e submissas e os homens tinham papéis bem definidos no meio social.
Ao olhar a série somos reportados a um passado não muito distante, talvez ao tempo de nossos avós, que espalhavam retratos de seus pais e avós em porta retratos pendurados nas paredes ou sobre aparadores de madeira bem torneados. As posturas e as vestes bem cuidadas, os corpos escondidos sob as roupas bem comportadas da época, os cabelos bem arrumados e as poses contidas nas fotografias antigas, reforçam essa atmosfera sóbrea dos tempos de nossos antepassados.
Porém, os olhares e os rostos escondidos sob a fina camada esbranquiçada da parafina, reforçada pela renda, nos revelam questões que vão muito além. Provavelmente a artista quis representar ali o falso moralismo de uma sociedade que vivia e sobrevivia da imagem, das aparências, do nome, da posição social. Não muito diferente dos dias atuais, mas muito mais camuflada e rígida. Uma imagem de resignação, de solidez e de moralidade, que censura os instintos dando lugar a uma imagem construída e distorcida do real.
A segunda série a ser analisada, Ikons, nos transporta a um mundo proibido. Ela é composta de três telas cuidadosamente pintadas e em cada uma apresenta temas que estão ligados às fantasias mais íntimas do ser humano. Questões que há poucas décadas não eram sequer pensadas, embora sempre estivesse em nosso subconsciente, emergem nas telas que retratam estas questões com muita força e coragem. Quebram-se tabus e nos permitem discussões a cerca da natureza humana e suas perversões. Fetiches sob identidades escondidas na tela Grupo dos quatro, evidenciam olhares fortes que se desviam do olhar do observador.

As cores utilizadas nas telas são vivas e vibrantes e sugerem que são temas que não podem mais ficar sob o pano sujo da censura e do tabu sociais. A hipocrisia e a sujeira social veda os olhos diante de grupos que se diferem pelas suas opçõs sexuais e seu estilo de vida, mas não vedam os olhos para a violência e a corrupção. Onde há imoralidade neste contexto? Ser diferente, ter fantasias e realizá-las no âmbito da intimidade não está mais restrito, mas ocupa seu lugar no mundo das artes.

A série Ikons contrasta com a série Memórias, não somente no uso dos materiais e na forma de expressão, tampouco no conteúdo subjetivo que cada uma apresenta. Mas ao mesmo tempo que falam línguas diferentes, dialetos singulares, se complementam quando uma pretende esconder, disfarçar e calar uma realidade, enquanto a outra pretende escancarar ralidades que a maioria não quer ver.

Ao voltar ao mundo real após “viajar” no interior das obras analisadas, voltamos com um outro olhar. Nossa mente e nossos sentimentos despertados no momento da observação, remodela nossa “lente” observadora e nos permite fazer leituras diversas e conhecer um pouco do artista naquela tela ali exposta. É como se a tela nos chamasse para uma breve visita a um pqueno recorte da personalidade do artista, que busca intensionalmente dizer sempre algo sobre ele mesmo ou sobre o meio no qual ele está inserido.

Juliana Moreno Cavalheiro é acadêmica do curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. O texto foi produzido como trabalho da disciplina Fundamentos da Linguagem Visual, ministrada pelo professor Rafael Maldonado.