terça-feira, 6 de setembro de 2011

Da delicadeza precisa



Virgílio Neto, desenho sobre papel


Os desenhos de Virgílio Neto que compõem a mostra Diálogos – em exposição no Museu de Arte Contemporânea de MS (MARCO) até 16 de outubro/2011 - reforçam alguns mecanismos do campo da representação figurativa oferecendo possibilidades de interpretação que podem ser temperadas por sensações de ternura, encantamento, surpresa e prazer.

Um prazer quase sempre mediado pela visualidade que opera com uma desconcertante economia de meios e com uma organização espacial impecável onde tudo o que é posto acontece com função bem definida e precisa, com idéias bem controladas que acentuam os sentidos de contradição em força e fragilidade, proximidade e amplitude, ruído e silêncio, simplicidade e complexidade, certeza e dúvida, permanência e apagamento.

As séries de desenhos são conduzidas por interesses momentâneos e os assuntos variam conforme os deslocamentos do artista. Contudo, o tratamento na confecção das obras mantém as mesmas características formais fazendo com que a unidade do conjunto seja potencializada por uma tônica dominante: a delicadeza.

Virgílio Neto vai reconfigurando nos desenhos uma gama de memórias visuais a partir da sua “paleta de imagens” proveniente de antigos álbuns de família, registros da internet, cenas jornalísticas, palavras avulsas e outros meios que proporcionem uma curiosidade gráfica, uma possibilidade de gesto, o elaborar de uma história ainda não revelada.

Em variadas dimensões os desenhos dão conta de narrar a inquietude do fazer do artista, valorizando o traço delicado nos percursos do grafite sobre o papel, ou, em alguns momentos, evidenciando na obra o que foi sutilmente sonegado por um apagamento, ou coberto por um pedaço de fita crepe, ou velado por uma massa de cor.

Nesses desenhos não há um lugar acostumado, não há uma fórmula definida para se ler o que está oferecido. Mas, seguramente, há o prazer da descoberta de cada detalhe, de cada personagem ou elemento que trazem consigo uma potência física, uma vontade poética.

A delicadeza dos desenhos de Virgílio Neto é precisa: comove pela simplicidade no uso de uma linguagem que renova, na atualidade, o sentido de permanência da tradição.  

Rafael Maldonado
Curso de Artes Visuais – UFMS
setembro de 2011

sábado, 4 de junho de 2011

Curumins

Elis Regina, da série Curumins, fotografia, 2010

O interesse da série fotográfica Curumins, de Elis Regina, consiste na apresentação do tema de retrato infantil sem o risco de utilização de recursos visuais que, através de uma dramatização exagerada, roubem a atenção do observador para o que há de mais eficiente nas cenas: a individualidade da imagem sem a valoração sugestiva da situação retratada.

Apesar disso, o compromisso com a forma e o estilo faz com que a fotógrafa recorra a elementos fundamentais da linguagem como contrastes de luz e sombra, a adoção de uma monocromia entre tons sépia e terra que enriquece o campo visual da imagem, o embate entre formas e texturas e a redução dos planos nas cenas.

São imagens que condensam o tempo e o ritmo peculiares de um lugar situado numa geografia cultural repleta de silêncio e inocência. Os retratos revelam a realidade de uma infância conduzida pela escassez e pontuam uma simplicidade expressiva que nos alerta para aquilo que está negligenciado, para o que parece injusto.

Um semblante ingênuo, um gesto tímido, um sorriso puro, um abandono. Assim o nosso olhar é seduzido e comoventemente deslocado, e, com muita competência, as fotos de Elis Regina cumprem a sua função.


Rafael Maldonado
Curso de Artes Visuais - UFMS
Abril 2011

Corpo em evidência ou memória insinuada

 
Lídia Baís, sem título/data, óleo sobre tela

Lançar um olhar investigador no acervo do Museu de Arte Contemporânea de MS (MARCO) revela ao exercício curatorial possibilidades no reposicionamento do sentido de algumas obras, tornando dinâmica a relação entre o discurso e formas de interpretação de conteúdos e códigos que cada objeto artístico condensa nos limites de seu suporte.

Esse recorte curatorial investiga nessas obras as maneiras em que a representação do corpo, visível ou não, se evidencia nas condições oferecidas pela singularidade das linguagens de expressão. Nesse sentido, o que é percebido enquanto forma corporal se apresenta numa figuração que transita entre a idéia naturalista de anatomia e os desdobramentos a partir dela. O que se oferece ao espectador são contrapontos entre nitidez e apagamento, forma e decomposição, fragmento e totalidade, memória e esquecimento, permanência e transitoriedade.

Partindo da percepção de que o corpo sempre esteve presente na construção representativa da história da arte, essas investigações tornam evidentes as conexões dialógicas entre obras posicionadas numa condição temporal/geográfica que as separam, mas, que em certa medida, são aproximadas por uma determinada identidade temática.

Assim, os artistas reunidos nessa mostra operam com a idéia de corpo e realidade transcendente, ora se apoiando no desenho que conduz a construção da imagem figurada, ora mediando essa presença através de metáforas e insinuações capazes de deslocar o olhar mais estático, movendo-o em novas direções.

O figurativo estruturado pelo estudo anatômico se evidencia nas obras de Lídia Baís, Fábio Baroli, Cláudia Vilela e Nelson Vaz, onde a forma de representação se apóia nos processos acadêmicos de construção da imagem e do realismo necessário para potencializar as proporções do instrumento corporal.

Em Marcelo Solá, Carlos Nunes, Genésio Fernandes, Lú Sant’Anna, Beto Lima e Ciríaco Lopes, encontramos a presença do banal no cotidiano e da ironia sagaz que menciona a diversidade dos assuntos que formam nosso repertório social. O despojamento na maneira de ilustrar esses assuntos é o que torna as obras significantes do lúdico, da fantasia e da sátira, respondendo diretamente ao ciclo compulsivo do mundo contemporâneo.

A memória de algo e a condição do desaparecimento são assuntos perceptíveis nas obras de Divino Sobral, Ana Ruas, Marina Boaventura, Vânia Pereira, Miska e Irani Brun Bucker. As lembranças são de certa forma, maneiras de se perceber a passagem do tempo e a duração do sentido das coisas na formação de identidades. Os trabalhos trazem em sua confecção elementos de uma história que são transpostos para o suporte da obra e reforçam aquilo que não queremos e não podemos esquecer.

Helder Rocha, Edson Castro, Alex Maciel, Vitória Basaia e Ovini Rosmarinus operam com o gesto distorcido da imagem, deixando evidente a vertigem na maneira como interpretamos esse corpo que estica, se entrelaça, se fragmenta e quase perde sua definição: abstrai-se. O estranhamento presente manifesta a transgressão que considera um novo sentido poético da forma e outras leituras sobre a configuração de um corpo híbrido.

O corpo se transforma num território de negociação estética e encontra ressonância na constante inquietação do processo criativo. O artista nos propõe transposições de lugares e nos solicita, para isso, um passo adiante no deslocamento necessário para que possamos perceber melhor o espaço que ocupamos e como, pelo viés da arte, nos damos conta disso.


Rafael Maldonado
Curadoria
Março de 2011

A impressão que fica




Gravura é a linguagem artística que através de uma matriz – linóleo, madeira, pedra ou metal - a imagem é gravada e depois impressa num suporte de papel, fornecendo, como carimbo, a reprodução de inúmeras cópias da mesma imagem.

A técnica exige precisão na maneira de gravar a matriz, uma vez que cada detalhe, cada área elaborada aparecerá de forma definitiva e invertida na cópia impressa. Uma complexidade que cria um ritmo próprio de trabalho, com sistematização nos gestos na hora de talhar a matriz e no ato de sua impressão.

Aliás, a impressão é o momento sublime da linguagem, é nesse instante que se revelam os elementos específicos de cada modalidade gráfica e a maneira que, minuciosamente, foram explorados para criar o campo visual da imagem.

É na impressão da matriz que se concretiza todo o processo, e, só a partir de então, que o artista tem a noção exata de sua obra.

Diz-se que é a gravura que escolhe o gravador, pois, é preciso daquele que a executa a disposição para adaptar-se aos desafios dos procedimentos de gravação, entender o tempo exato que o trabalho exige respeitando cada etapa de elaboração da obra, imprimindo e avaliando as cópias de teste sem a pressa de obter resultados imediatos.

É essa a impressão que fica: a gravura é uma arte silenciosa, intimista, de pequenas dimensões, quase sempre monocromática. Contudo, com presença potente entre as linguagens da arte, utilizada pelos artistas que aproximam e atualizam a antiga técnica para o momento atual, renovando constantemente sua força estética entre conceitos e procedimentos da produção contemporânea.

A mostra reúne alguns trabalhos de linografia e xilografia desenvolvidos no atelier de gravura do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, reforçando a importância desse espaço privilegiado no fomento e desenvolvimento das técnicas da gravura e na mediação do exercício criativo dos alunos para a descoberta de novas poéticas de expressão.

Rafael Maldonado
Orientação e curadoria
Novembro 2010